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foto: Filipe Berndt

Ninguém pediu para eu fazer isso, 2022

Exposição individual no Bananal Arte e Cultura Contemporânea.Curadoria: Julia Lima

“A produção de Bruna Amaro tem início em 2018, fruto de uma combinação de pesquisas acadêmicas com uma longa tradição no fazer manual. Em sua obra, a artista articula materiais típicos do carnaval – festa à qual dedica seu tempo e envolvimento há muitos anos –, com pesquisas sobre a história da arte e o feminismo, em uma leitura interseccional muito singular. À primeira vista, de imediato, nos deparamos com a materialidade e a manualidade carnavalescas, realizadas no manuseio extremamente habilidoso de cetins, lantejoulas, paetês, miçangas, fitas e bordados, de cores saturadas e vibrantes. São elementos sedutores e fascinantes, que nos atraem o olhar e os dedos pelos reflexos, pela policromia e pela luminância. No entanto, há muito mais a se revelar neste corpo de trabalho do que apenas uma pele luminosa.

Em boa parte dos objetos dessa exposição, há uma presença marcante de imagens femininas, principalmente aquelas retiradas da história da arte. Não são cenas aleatórias, mas sim episódios fundamentais nas pesquisas sobre a representatividade e gênero no campo. Sabemos, hoje mais do que nunca, que a borracha foi o instrumento mais violento contra mulheres artistas, frequentemente aliado a violações sexuais e morais que já eram parte do pacote-padrão de comportamento. A tantas delas não foi sequer dada a chance de tentar sobreviver ao peso do tempo, tendo suas presenças barradas das academias e salões e suas identidades ofuscadas por companheiros, ocultadas dos créditos e “acidentalmente” esquecidas dos livros.

foto: Filipe Berndt
foto: Filipe Berndt
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foto: Filipe Berndt
foto: Filipe Berndt

Foram poucos os nomes que escaparam desse brutal processo de apagamento, como o da italiana Artemísia Gentileschi – homenageada por Amaro no guião vermelho “Artemísia vulgaris”. Nele, reproduz-se a assombrosa cena de Judite decapitando o general assírio Holofernes. O episódio bíblico foi retratado por diversos pintores, mas a comparação mais radical está entre a versão de Caravaggio (um grande mestre barroco do chiaroscuro, dramático jogo de luz e sombra que é traço distinto do movimento e a característica mais memorável em sua obra) e a de Gentileschi. Na primeira, Judite segura a cabeça de Holofernes pelos cabelos com pouco empenho e com a outra mão parece deslizar a lâmina da espada com muita facilidade pelo pescoço robusto do general, mantendo o colo e os braços despidos imaculados. Já a segunda versão é totalmente matizada pela história pessoal de Gentileschi, que parece compreender muito mais visceralmente o predicado da personagem. A artista havia sido vítima de um estupro, e chegou a se submeter a tortura para provar judicialmente sua alegação. Na pintura, ela retrata a passagem de modo drasticamente mais realista: imprime força e peso no gesto, detalha respingos de sangue sobre a pele e a roupa, e até delineia os pelos da barba do assírio por entre os dedos da viúva que seduz o inimigo para salvar seu povo. Há mais dois trabalhos que compõem essa série, com uma segunda imagem de Judite e uma peça que homenageia Salomé.

Ampliando suas investigações sobre os lugares e papeis das mulheres para um contexto local e atual, Amaro também desenvolveu o projeto “AS PAPANGU”, que culmina em uma performance no último dia da mostra. Essa pesquisa surgiu a partir de uma viagem ao sertão de Pernambuco, onde a tradição do uso das máscaras de Papangu durante o carnaval é alimentada há décadas. Usados apenas pelos homens da região, os disfarces são um instrumento de anonimato que permite um farrear sem consequências. Identificando a disparidade de gênero nessa prática, a artista propôs-se a realizar uma ação que inverte essa hierarquia. Ao longo do período expositivo, irá criar cerca de 40 máscaras e costurar as respectivas fantasias, que serão então usadas por mulheres convidadas a tocar e dançar, protegidas pelo anonimato do rosto, mas com seus corpos tão expostos quanto quiserem.
 

Outras obras lançam mão apenas da linguagem escrita. Cor e forma são secundários em estandartes e faixas (típicos dos blocos de rua e das manifestações e protestos políticos) que carregam vocábulos e frases, às vezes em português, às vezes em inglês – ou até mesmo em ambas as línguas, com traduções paralelas. Mas as palavras de ordem levantadas nessas bandeiras nem sempre nos remetem ao uso original do suporte; pelo contrário, são provocações profundas, colocando em xeque o próprio lugar de onde saíram. O que queremos celebrar? e What do we want to celebrate? desafiam a própria natureza do carnaval, impondo uma reflexão fundamental sobre os tempos nefastos que vivemos e as possibilidades reais de festejar, gozar, fruir. Em outras peças, Amaro emprega bordões que afrontam o próprio ser artista, como “Try again, fail again, fail better”, literalmente entendida como “Tente de novo, falhe de novo, falhe melhor”, fazendo referência às dificuldades profundas de seu ofício; ou o trabalho que empresta seu bordão para o título da mostra – “Ninguém pediu para eu fazer isso”.

Se ninguém pediu, por que fazer? Arte é a coisa mais sem função que alguém poderia produzir. Não alimenta, não veste, nem guarda, abriga ou transporta. Contudo – e precisamente por não ter função aplicável a priori – talvez seja o elemento a mais essencial à nossa existência. Quem cria, quem é artista, o faz apesar dessa condição, acreditando que o que está colocando no mundo é aquilo que tem de melhor para oferecer na esfera da poesia, não do utilitarismo. Se, depois de pronto, o objeto artístico ganhar serventia e se tornar mercadoria, entretenimento, ação política, experiência espiritual, revelação filosófica, fantasia carnavalesca ou mesmo decoração, não há problema nenhum. Essa será sua segunda natureza. É numa etapa anterior que reside o indizível: no ínfimo hiato entre a elaboração de uma ideia (ou uma imagem) e sua execução. Quiçá o que difere todas as outras ocupações da de artistas seja exatamente a decisão do fazer, do consumar aquilo que se quer comunicar, mesmo sem ninguém ter pedido, e que só pode ser dito por meio de um suporte como o da pintura, do artefato, da música ou da dança. No caso de Bruna Amaro, por meio do paetê, da palavra e do carnaval.”

Julia Lima
Fevereiro de 2022

foto: Filipe Berndt
foto: Filipe Berndt
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